Não só a conta bancária havia sofrido um evidente desfalque, como também eu me sentia diminuta, perto de metade.
Deixei a mala aberta num canto e durante três dias ignorei o seu conteúdo, esqueci-me dos postais, da roupa por lavar, do perfume que comprei no aeroporto.
Costuma-se dizer, e é bem certo, que após um cume de euforia as coisas tendem a cair estrondosamente, atingindo por vezes valores negativos - não que seja o caso - mas definitivamente o pináculo ficara em Itália. Agora deparo-me com uma infinita planície.
Rumo a Barcelona, novamente num voo lowcoast, nenhum homem de gravata se sentou à minha direita. Na verdade, os acentos estavam livres e o avião quase desértico.
Incapaz de suportar a venda de cosmética e cigarros electrónicos, senti-me retroceder lentamente ao meu eu, à minha consistência isenta de distorções ou hipérboles apaixonadas.
Hoje finalmente atrevi-me a tirar da mala o envelope dos postais – que substituem terrivelmente as fotografias que teria tirado – e detenho-me na Ponte Vecchio.
É uma imagem muito típica e bastante poetizada: o céu é de um azul arroxado muito intenso e a ponte, já relativamente iluminada em tons amarelo-torrado, reflecte-se no Arno em contornos fantasmagóricos. Sobrepostas sem danificar o espelho aquático, letras itálicas fazem sobressair o nome Firenze.
No verso não está nada escrito. É um postal endereçado à minha inevitável saudade. Segue-se uma imagem da catedral Santa Maria di Fiori, que brota do cume da cidade exibindo aos céus a sua majestosa cúpula.
No seu interior, o Duomo está revestido por pinturas de Giorgio Vasari e Federico Zuccari que representam o Juízo Final e cuja minuciosidade faz com que se perdoe a fatigante subida rumo ao topo.
Após revisar toda a colecção – ao todo comprei 8 – fito a minha Canon e aproveito para fazer-lhe um pedido de desculpas oficial. Apesar de bonitos, os postais são corriqueiros. Captam os pontos turísticos na perfeição mas não agarram os pormenores ou a essência da cidade.
No dia da minha chegada, já se adivinhando a noite, atravessei o coração de Firenze, pressentido, no entanto, que era a cidade que me perfurava o âmago. Tudo se me afigurava mais fabuloso que possível; não só saboreei o romance clássico, a bella vita italiana e a briza mediterrânea, como também a certeza, a inabalável convicção de que pertencia.
Apesar de nunca ter estado na Piazza della Signora, vi-a e percorri-a como se a minha janela para lá se abrisse todas as manhãs. Na praça estão dispostas algumas estátuas, incluído a famosa de Perseo, da autoria de Benvenuto Cellini. Nessa noite tive o prazer de conhecer Matteo Sacchetti, florentino de gema e licenciado em Storia dell'Arte, que me explicou que as estátuas de bronze, na altura, eram feitas por partes, pedaço a pedaço. Os artistas fundiam o bronze e colocavam as frações numa espécie de molde, onde finalmente se estabelecia a obra completa. Cellini, ao contrário da norma, fez Perseu de uma só vez. Nenhum artista até então havia levado a cabo tal atrevimento.
Agora, de volta ao pequeno quarto das paredes azuis, penso em Cellini com uma estranha empatia.
Agora, de volta ao pequeno quarto das paredes azuis, penso em Cellini com uma estranha empatia.
Raquel Dias
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