Por vezes são os livros que nos escolhem a nós. Atravessam-se no nosso caminho de forma inesperada, exigindo atenção e aproveitando-se das nossas evidentes debilidades... Isto aconteceu-me na sexta-feira passada. Despedia-me do bairro de Gràcia quando uma pequena livraria captou-me a atenção por evidentemente ter os dias contados. Exibia promoções inacreditáveis - o preço dos livros não ultrapassava os 3€, imagine-se...
Entrei sem grandes expectativas e, tal como suspeitava, tratava-se de uma daquelas livrarias atoladas de obras sem qualquer êxito que ficaram ignoradas nas prateleiras durante décadas. Proliferavam livros de reiki, bons hábitos alimentares, romances hiper cor-de-rosa, e guias de viagens seguramente desatualizados.
Dei uma rápida vista de olhos, na esperança de encontrar uma secção de poesia ou obras de renome...
Mas nada.
Entrei sem grandes expectativas e, tal como suspeitava, tratava-se de uma daquelas livrarias atoladas de obras sem qualquer êxito que ficaram ignoradas nas prateleiras durante décadas. Proliferavam livros de reiki, bons hábitos alimentares, romances hiper cor-de-rosa, e guias de viagens seguramente desatualizados.
Dei uma rápida vista de olhos, na esperança de encontrar uma secção de poesia ou obras de renome...
Mas nada.
Quando já me encaminhava para a porta - isto após 1 minuto de observações desafortunadas - dei com uma coleção de pequenos livros de contos. No meio da pilha estava um Edgar Allan Poe perdido. Como poucos versos me fazem estremecer como o famoso "all that we see or seem Is but a dream within a dream", fui automaticamente absorvida pela descoberta. Li alguns parágrafos, deliciei-me no meu horror. (Quem já leu Allan Poe sabe ao que me refiro.) 3€. A carteira cheia de moedas. Estava destinado.
Hoje terminei o primeiro conto que se intitula "o gato preto" e sinto uma necessidade feroz de comentar o impacto que esta meia dúzia de páginas me causou. De certo modo fez-me lembrar um outro livro de contos, "Ojos de Perro Azul", de G.G. Márquez, que contém uma história assombrosa sobre uma jovem que relata o seu desvanecimento físico e que continuamente se refere a um "menino" que está enterrado por debaixo de uma laranjeira. Arrepio-me só de recordar. É algo que tenho de reler, de tempos a tempos, para reaver um pouco do prazer doentio em que aquelas frases me envolveram na primeira vez. É uma fascinação que brota de um temor suave e saboroso, uma laranja suculenta onde corre o sangue do menino, um homem de alma corrompida que enforca o seu gato no jardim.
O Gato Preto (1843) é um impressionante conto narrado na 1° pessoa e em forma de confissão. Sobre a influencia do suposto demônio da Intemperança, o protagonista começa a maltratar a sua esposa e os seus animais. Pluto, o gato que outrora fora o seu amigo predileto, acaba por tornar-se na principal vítima da história e o derradeiro assombro do homem.(No more spoilers.)
Não sei se é por ter um gato - e uma fascinação algo exagerada pela criatura - ou se por me sentir frequentemente curiosa quanto à degradação do espírito... a verdade é que esta história levou-me o coração à garganta.
Neste relato, o que impacta não é a conduta do protagonista mas sim a forma como ele assume - e convive - com os seus atos. A dada altura, a sensação é de que o sujeito é um mero observador e que nenhum dos acontecimentos o atinge diretamente. A ausência da moralidade é o que confere carga dramática a este conto - e praticamente a todas as obras de Poe. É precisamente isto o que aterroriza e fascina: a noção leviana da corrupção da alma. Crimes estranhos e simultaneamente familiares edificam-se de forma natural, progredindo rumo à obscuridade mais nefasta. É verdadeiramente perturbador assentir que não se trata de loucura e muito menos de um sonho. Trata-se de uma degradação assentida pelo personagem. O final da trama é fabuloso.
A revelação do monstro, através de um fantasma inesperado, desponta uma sensação de vingança divina, contra a qual o criminoso revela-se impotente. Fortemente demarcado por um destino algo irónico e surreal, o conto termina em linhas breves. Ler este relato foi uma experiência assombrosa.
A revelação do monstro, através de um fantasma inesperado, desponta uma sensação de vingança divina, contra a qual o criminoso revela-se impotente. Fortemente demarcado por um destino algo irónico e surreal, o conto termina em linhas breves. Ler este relato foi uma experiência assombrosa.
Edmund Burke, autor da obra "Inquérito filosófico sobre as origens dos conceitos de sublime e belo”, que tanto inspirou Kant, escreveu a dado momento que "o horror é a condição essencial para o sublime". No caso de Allan Poe esta afirmação não poderia estar mais correta. Mas ainda mais curiosa que a capacidade de converter - ou elevar? - atrocidades ao estado de arte, é a nossa fascinação - e diria até agrado - perante a leitura de tamanhas brutalidades. São estes prazeres negativos – conscientes ou não - que fazem do espírito humano um enigma irresolúvel e fascinante.
Existe um inexplicável prazer na tragédia. E isto aplica-se até à tragédia pessoal. Poucos o admitem, mas creio que intimamente já todos saboreamos a deliciosa dor da catástrofe.
Jacques Cabau soube transmitir esta sublime capacidade de Poe num simples raciocínio: "O conto de Poe é o contrário do conto de terror clássico. Em vez de lançar um indivíduo normal num universo inquietante, Poe larga um indivíduo inquietante num mundo normal. Nada acontece ao heróio; ele é que acontece ao mundo".Assim funcionam os mecanismos de fascinação, através de uma familiaridade que nos escapa à superfície. A verdade é precisamente esta: em última análise, todos nos assemelhamos às personagens de Poe. Inseridos em realidades que não compreendemos ou apreciamos, acabamos por ser cada um, à sua escala e pormenor, a peça que não encaixa. Mas que piada teria se tudo encaixasse perfeitamente e não sobressa espaço para divagação, medo, enfim, para a adrenalina de viver inquietações?
Já cantava Caetano Veloso, "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..."
Raquel Dias
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