Estava a estremecer de tal modo que o engravatado que se
encontrava sentado à minha direita não hesitou em perguntar-me, com um ar genuinamente
preocupado: a senhora sente-se bem?
Dei-lhe uma resposta bastante poética que, infelizmente, não é da minha
autoria: existem duas formas de enfrentar a vida. Seguir sempre o caminho
principal ou ingressar por todos os desvios que surgem. Eu neste momento estou
bastante desviada da rota.
Ao debater-se com uma resposta tão improvável, o homem olhou-me perplexo e algo
confuso – talvez me julgasse louca – acabando, no entanto, por esboçar um
sorriso sincero. Então boa sorte, disse-me.
Não posso descrever ao certo o
sentimento que me invadiu na véspera. Apesar de ser algo familiar, nunca me
tinha avassalado de forma tão violenta (ao ponto de comprar os bilhetes na internet,
logo eu que sempre temi estas modernices…).
Talvez no fundo a minha espontaneidade esteja a disfarçar um medo – ou problema
– bem mais profundo que não consigo detectar. Ciente disto ou não, comprei um
bilhete de ida e volta no site da
edreams, forneci todos os dados que me requisitaram, e ainda renunciei ao
seguro de viagem.
Como se costuma dizer no bom português, o preço foi de facto um achado. Foi uma motivação, quase que
um sinal. Apesar de estar bastante determinada, se o preço fosse algo exorbitante
eu não teria cometido a loucura. E esta crónica certamente nunca seria escrita.
De pronto imprimi os bilhetes e guardei-os com a vida.
Ainda imersa num êxtase inexplicável tirei a mala vermelha do armário e comecei
a arremessar roupa ao acaso para o seu interior. Não me preocupei com a temperatura ou com as conjugações de peças. E no meio de tanta urgência e alienação,
esqueci-me justamente do meu bem mais precioso: a máquina fotográfica.
A Canon ficou-se pela estante, a observar-me, entristecida, a exclui-la
despropositadamente da que seria a viagem
da minha vida.
Escusado será dizer que a máquina fotográfica não foi o único objecto deixado
para trás; na lista de bens olvidados constam imprescindíveis como a escova de
dentes.
Nessa noite, a poucas horas do voo, não houve sono que me aquietasse. Sentia um
formigueiro percorrer-me o corpo, o coração prestes a estalar, a consciência a
vacilar, que raio estás tu a fazer, Raquel?!
Assegurei-me milhentas vezes de que havia colocado o despertador para as 6:30,
ainda que na realidade não fosse necessário faze-lo; o meu corpo jamais me
deixaria adormecer ou esquecer a aventura que se avizinhava.
Comecei a escrever estas linhas no avião, com o intuito de acalmar os ânimos e
ocupar a hora e 45 minutos em que atravessava os céus.
O engravatado continuava a sorrir-me esporadicamente, não sei se por pena ou se
por simpatia, ao que eu retorquia um incontrolável sorriso impaciente, baixando
automaticamente a cabeça para o caderno.
Sentia-me vulnerável a um ataque do coração, ataque de consciência, a uma rutura
súbita da fantasia, por outras palavras, ao arrependimento.
E no ponto em que estavam as coisas, o remorso seria bem mais fulminante que
todos os perigos contidos neste incalculado desvio.
Repensei nas opiniões que não consultei, nas autorizações que não pedi. Pouco
importava agora, que estava sentada no acento 6F, rumo à minha indomável
vontade, graças às minhas inacreditáveis poupanças – quem diria, hm?
Nas companhias lowcoast não servem
comida. Pelo menos não gratuitamente. No entanto tentam impingir perfumes, raspadinhas e cigarros electrónicos.
Em condições normais, a constante voz do capitão a ecoar catálogos e promoções
irritar-me-ia bastante. Mas neste caso agradeci todo a distracção; nesses
intermitentes espaços de tempo conseguia abstrair-me da loucura e cobiçar o
novo perfume da Givenchy, ainda que lhe desconhecesse o cheiro.
Finalmente avistei Milão ao fundo das nuvens. O comandante informou-nos da
temperatura – precisamente 13 graus – e da possibilidade de aguaceiros para o
resto do dia. Este facto não me incomodou, muito pelo contrário. Dado que ainda
tinha uma viagem de comboio pela frente, a ideia de adorna-la com chuva
pareceu-me perfeita.
Quando aterramos, o homem de gravata deu-me uma reconfortante palmadinha no
ombro e voltou a desejar-me sorte; creio que algo no meu discurso o fascinou,
porque os seus pequenos olhos azuis cintilavam para lá das lentes.
Desci do avião com a pequena mala vermelha e atravessei o aeroporto em passo acelerado.
Não me atrevi a ligar o telemóvel.
Apanhei um táxi rumo à estação e aproveitei para exibir o meu péssimo italiano:
Tenga pure il resto, grazie!
A stazione centrale de Milano é um edifício bastante bonito no qual mal
reparei.
O nervosismo voltava a atacar-me e piorou significativamente quando, frente ao
painel de partidas, me deparei que precisamente à mesma hora saíam os
comboios rumo a Verona e a Firenze.
- Dove? – Perguntou-me a senhora do guiché, no seu simpático estilo italiano.
- È veramente necessario dire?
Raquel Dias
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