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5 de janeiro de 2013

Alegorias urbanas: reflexão de um não-lugar





O voo está uma hora atrasado.
Beberico um cappuccino pouco convincente e considero ligar o computador portátil.

O bloco de notas está a dar as últimas: restam-me pouquíssimas páginas e mesmo com uma caligrafia pequena é assombrosa a velocidade com que as folhas se consomem…
Ainda assim opto pelo meio tradicional, e de caneta em punho deixo que as ideias se libertem ao ritmo das observações.
Aqui, a atmosfera é incerta: altera-se a cada segundo, a cada passageiro. Ansiedade, telemóvel, mochila de couro, tranquilidade, família, solidão. Os ingredientes abrangem estados de espírito diversos. Independentemente, aqui ninguém é, apenas está.
Como que projecções, num meio-termo vago, a existência limita-se à espera. Insignificantes, os passageiros aceitam que relógio dite os passos.
O silêncio predomina nas deslocações, na expectativa. Todos se sentem invadidos quando encarados nos olhos ou abordados por um estranho. Quase se poderia falar de desumanização, não fosse o termo soar relativamente exagerado...

Seres pouco sociais deambulam entre os terminais, entre o check in e a porta do avião, que nem meros andarilhos da modernidade vácua, peões num jogo onde ninguém se reconhece.
A dimensão do próprio corpo torna-se perto de nula; resta uma confusa virtualidade ainda carente de definição.
Onde o fixo torna-se móvel e o real nubloso, a adaptação requer um despegue e sobretudo a aceitação da vida moderna, onde se sobrepõem a ligação à permanência.
Precisamente nesta linha de pensamento, Michel de Certeau edificou o conceito de não-lugar para referir-se às novas relações com o espaço na cidade.
É diametralmente inverso ao lar, ao espaço individualizado; concluindo, é o sítio das cotoveladas. Das multidões incógnitas.
E claro: nos aeroportos dá-se um dos expoentes do fenómeno. Estes sítios nenhuns onde as vidas se cruzam mas não se tocam remetem para a própria globalização, para estes tempos mais que pós-modernos, onde o mundo é reduzido a breves trajetos.
Contudo, esta questão dos lugares e não-lugares, não só corresponde a espaços concretos como também a atitudes e posturas – uma dimensão inconstante que cada usuário define e delimita.

Por fim, a porta de embarque, o meu bilhete de ida para um qualquer lugar.
Despeço-me do El Prat, das minhas divagações sociológicas,
ainda que por um breve período

(...)


Raquel Dias
20.12.2012


1 comentário:

Inês disse...

Mesmo assim, ninguém me tira da cabeça de que os aeroportos são os melhores locais para se estar! Observar as pessoas, perceber a tristeza/felicidade/medo, ansiedade/calma, cansaço/vida. Mete-te rápido num avião, caso contrário fazes-me a mim meter num para te ir buscar!