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5 de fevereiro de 2013

em contra-mão



Às tantas, a sua própria natureza revoltou-se contra o excesso de reflexão. Aquele assunto não voltaria a estar na ordem do dia. Qualquer ideia que se lhe assemelhasse seria automaticamente banida e a punição nada branda. Havia chegado a um penoso acordo consigo próprio, em resposta a uma obsessão já suficientemente duradoura e idiota, que o despedaçava gradualmente sem que ninguém reparasse. 

Pouco dado à partilha de sentimentos, decidiu resolver o assunto internamente, quando admitiu para com a parte racional o turbilhão em que se havia afundado e de onde precisava urgentemente de emergir.
Na manhã seguinte saiu de casa revigorado, com uma nova atitude espelhada no rosto e no caminhar. Os passos eram firmes, a mirada fixava-se na beleza do dia, onde uma Primavera precoce invadia os sentidos, ouvia os sons citadinos e neles se abstraia, pensava em trivialidades, num nada bastante concreto. 
Tomara a decisão de viver mais ao de leve. Renunciara aos pensamentos profundos e às emoções intensas. Seria o pastor de Alberto Caeiro. 
Não investigaria mais as profundezas da irracionalidade nem as dimensões alienadas das suas vivências. De agora em diante a vida seria simples. 
Desprovido das entrelinhas da existência, cumpriu a rotina da forma mais presumível, vestido de cores neutras e sem quaisquer expectativas.  Não se detinha em pormenores nem em rostos. Dissolvia-se na multidão, no anonimato, na indiferença da gente. Às tantas era um deles. 
Enganava majestosamente a própria identidade. Era de tal modo entendido na complexidade da mente que conseguia burlar a percepção e viver no desapego sem a menor resistência. 
Em pouco tempo deixou de se recordar dos sonhos. Os pesadelos que o atormentavam foram substituídos pela suspeita de que já nem sonhava. Dormia num sossego que sempre julgou inalcançável.
As fantasias cederam à fatiga e expiraram. Os planos mais ambiciosos e tresloucados foram convertidos em metas diárias e nada exigentes. 
Era uma pessoa vulgar, embrenhada na vulgaridade, tal como havia decidido certa noite. 
Não se permitia a remorsos; isso levantaria intrincadas reflexões e o pacto não o permitia.

No entanto, sem que se atrevesse a formular a frase, assentia que o grande teste à sua robustez ainda estaria para chegar…

Raquel Dias


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