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2 de fevereiro de 2014

“o sexo serve de consolo para aqueles que não têm amor”



"Uma das superstições da mente do homem", observou Voltaire, é "imaginar que a virgindade pode ser uma virtude." Uma virtude aos olhos de quem vê, e para quem o objectivo é, paradoxalmente, ataca-la.
*

Depois de uma vida passada nos braços de prostitutas, um anónimo jornalista de 90 anos descobre o improvável prazer de contemplar o corpo de uma mulher virgem sem a urgência do desejo. “O teatro das nossas noites", chama-lhe.
Num cenário impregnado de imaginação febril e sensações novas, a cortina nunca desce. Para além do orgulho e da vergonha, um sentimento misterioso brota… trata-se do “início de uma nova vida numa idade em que a maioria dos mortais já morreu “.

A pedofilia e a prostituição infantil são abordadas de forma ténue e natural; não só porque esta é a triste realidade da época, mas sobretudo porque não importa. A beleza do primeiro amor faz com que se ignore a lei e a moralidade.
Afinal, perante tamanha descoberta, o que são 70 anos de diferança? Quem é que é vai franzir o sobrolho perante um afeto respeitoso e consentido?
O sentimento é quente e esperançoso: todos podemos encontrar um amor genuíno no momento mais inesperado. Até porque, no fundo, c
oincidimos (e tememos!) que "não há maior desgraça do que morrer sozinho."

Mas vejamos... para além de uma história promissora sobre as maravilhas do enamoramento, o que é que faz de As memórias das minhas putas tristes uma obra sublime?
Well, that dirty old man.
Este é um dos maiores personagens de García Márquez, quase equiparável ao louco romântico Florentino Ariza, cuja determinação para conquistar aos 70 anos a mulher que o rejeitou nos seus 20, impulsiona e alimenta toda a trama de Amor nos Tempos do Cólera.
Demente, sujo, solitário. Um personagem que se estima apesar do asco. Um velho imoral que vive para a luxúria sem matar o romântico incurável que nele ainda sobrevive (e aquelas cartas de amor?!) 90 é um número e não sinónimo de iluminação existencial.
A Lolita de traços indígenas também tem o seu encanto... Mas não existe d
esvirginamento mais profundo que o dos nossos sentimentos aprisionados numa idade em que se deduz que "já se viu de tudo..."


*

O filme…

A adaptação do livro ao grande ecrã foi lançada em 2011 pela mão de Henning Carlsen. 
O inominado protagonista é Emilio Echevarría – quem não se lembra do seu fabuloso papel em Amores Perros? - e a joven Delgadina é Alejandra Barros. Apesar deste improvável casal convencer o suficiente, a atmosfera do livro não é captada na plenitude (temo não ter argumentos concisos para explicar esta sensação…)
É uma bonita mas pobre adaptação. Seja como for, vale a pena. Mas depois do livro, sempre depois do livro.


Raquel Dias


8 de junho de 2013

Horrores de Poe

Por vezes são os livros que nos escolhem a nós. Atravessam-se no nosso caminho de forma inesperada, exigindo atenção e aproveitando-se das nossas evidentes debilidades... Isto aconteceu-me na sexta-feira passada. Despedia-me do bairro de Gràcia quando uma pequena livraria captou-me a atenção por evidentemente ter os dias contados. Exibia promoções inacreditáveis - o preço dos livros não ultrapassava os 3€, imagine-se...
Entrei sem grandes expectativas e, tal como suspeitava, tratava-se de uma daquelas livrarias atoladas de obras sem qualquer êxito que ficaram ignoradas nas prateleiras durante décadas. Proliferavam livros de reiki, bons hábitos alimentares, romances hiper cor-de-rosa, e guias de viagens seguramente desatualizados.
Dei uma rápida vista de olhos, na esperança de encontrar uma secção de poesia ou obras de renome...
Mas nada.
Quando já me encaminhava para a porta - isto após 1 minuto de observações desafortunadas - dei com uma coleção de pequenos livros de contos. No meio da pilha estava um Edgar Allan Poe perdido. Como poucos versos me fazem estremecer como o famoso "all that we see or seem Is but a dream within a dream", fui automaticamente absorvida pela descoberta. Li alguns parágrafos, deliciei-me no meu horror. (Quem já leu Allan Poe sabe ao que me refiro.) 3€. A carteira cheia de moedas. Estava destinado.
Hoje terminei o primeiro conto que se intitula "o gato preto" e sinto uma necessidade feroz de comentar o impacto que esta meia dúzia de páginas me causou. De certo modo fez-me lembrar um outro livro de contos, "Ojos de Perro Azul", de G.G. Márquez, que contém uma história assombrosa sobre uma jovem que relata o seu desvanecimento físico e que continuamente se refere a um "menino" que está enterrado por debaixo de uma laranjeira. Arrepio-me só de recordar. É algo que tenho de reler, de tempos a tempos, para reaver um pouco do prazer doentio em que aquelas frases me envolveram na primeira vez. É uma fascinação que brota de um temor suave e saboroso, uma laranja suculenta onde corre o sangue do menino, um homem de alma corrompida que enforca o seu gato no jardim.
O Gato Preto (1843) é um impressionante conto narrado na 1° pessoa e em forma de confissão. Sobre a influencia do suposto demônio da Intemperança, o protagonista começa a maltratar a sua esposa e os seus animais. Pluto, o gato que outrora fora o seu amigo predileto, acaba por tornar-se na principal vítima da história e o derradeiro assombro do homem.(No more spoilers.)
Não sei se é por ter um gato - e uma fascinação algo exagerada pela criatura - ou se por me sentir frequentemente curiosa quanto à degradação do espírito... a verdade é que esta história levou-me o coração à garganta.
Neste relato, o que impacta não é a conduta do protagonista mas sim a forma como ele assume - e convive - com os seus atos. A dada altura, a sensação é de que o sujeito é um mero observador e que nenhum dos acontecimentos o atinge diretamente. A ausência da moralidade é o que confere carga dramática a este conto - e praticamente a todas as obras de Poe. É precisamente isto o que aterroriza e fascina: a noção leviana da corrupção da alma. Crimes estranhos e simultaneamente familiares edificam-se de forma natural, progredindo rumo à obscuridade mais nefasta. É verdadeiramente perturbador assentir que não se trata de loucura e muito menos de um sonho. Trata-se de uma degradação assentida pelo personagem. O final da trama é fabuloso.
A revelação do monstro, através de um fantasma inesperado, desponta uma sensação de vingança divina, contra a qual o criminoso revela-se impotente. Fortemente demarcado por um destino algo irónico e surreal, o conto termina em linhas breves. Ler este relato foi uma experiência assombrosa.
Edmund Burke, autor da obra "Inquérito filosófico sobre as origens dos conceitos de sublime e belo”, que tanto inspirou Kant, escreveu a dado momento que "o horror é a condição essencial para o sublime". No caso de Allan Poe esta afirmação não poderia estar mais correta. Mas ainda mais curiosa que a capacidade de converter - ou elevar? - atrocidades ao estado de arte, é a nossa fascinação - e diria até agrado - perante a leitura de tamanhas brutalidades. São estes prazeres negativos – conscientes ou não - que fazem do espírito humano um enigma irresolúvel e fascinante.
Existe um inexplicável prazer na tragédia. E isto aplica-se até à tragédia pessoal. Poucos o admitem, mas creio que intimamente já todos saboreamos a deliciosa dor da catástrofe.
Jacques Cabau soube transmitir esta sublime capacidade de Poe num simples raciocínio: "O conto de Poe é o contrário do conto de terror clássico. Em vez de lançar um indivíduo normal num universo inquietante, Poe larga um indivíduo inquietante num mundo normal. Nada acontece ao heróio; ele é que acontece ao mundo".Assim funcionam os mecanismos de fascinação, através de uma familiaridade que nos escapa à superfície. A verdade é precisamente esta: em última análise, todos nos assemelhamos às personagens de Poe. Inseridos em realidades que não compreendemos ou apreciamos, acabamos por ser cada um, à sua escala e pormenor, a peça que não encaixa. Mas que piada teria se tudo encaixasse perfeitamente e não sobressa espaço para divagação, medo, enfim, para a adrenalina de viver inquietações?

Já cantava Caetano Veloso, "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..."

E. Allan Poe, black cat, por Byam Shaw 




Raquel Dias