Estavam dois gatos no telhado, um miúdo de cabelos ruivos
com um cão ao fundo, prédios mortos na penumbra desabitada, um velho de chapéu
negro, beatas nos canteiros, flores adormecidas em botões perfeitos, toda uma
tristeza combalida, uma ferida aberta no ânimo.
Um terceiro cigarro, o fumo quente fatal; de cotovelos no parapeito, tenho a
noite embrenhada nos pensamentos. Não é necessariamente tarde. Mas o miúdo já
devia estar em casa.
Mio para os gatos que me fitam intrigados de olhos arregalados. Ambos são
negros e magríssimos.
O velho arrasta-se, de sapatos gastos vadios, murmura para consigo os infortúnios da vida, a insensatez da gente, a miséria das almas.
O velho arrasta-se, de sapatos gastos vadios, murmura para consigo os infortúnios da vida, a insensatez da gente, a miséria das almas.
Um dos gatos espreguiça-se. Eu próprio exercito os ombros. Preciso de
inspiração, de uma emoção imensa que me liberte da narcose.
Agora chove, muito ao de leve, o miúdo correu para o lote 437, o velho
desapareceu na escuridão, apenas o vento deambula pelas ruas, e eu ainda de
cotovelos no parapeito, peço um simples e conciso desejo, alguma inspiração,
por favor.
Seguem-se as doze badaladas. A hora mágica das comoções, dos feitiços de
lua-cheia, das criaturas hediondas.
Imagino a criança ruiva, no entanto, em contraste com a meia-noite, adormecida
entre lençóis azuis com foguetões… Reveste-se-me a cara de infância e nem sou
capaz de acender o sétimo cigarro.
Entristeço-me. Decido que vou escrever sobre isso.
Da inocência à penumbra, uma questão de horas, de tempo.
Tardará muito a manhã?
Raquel Dias
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